Quando a Morte conta uma história, você deve parar para ler.
Sabem aquelas histórias que são simples, mas existe uma magia, um diferencial na forma que elas são contadas? Que talvez, se fossem simplesmente narradas de outra maneira, elas perderiam boa parte do encanto? Mas que por terem sido usadas justamente as palavras certas, nos momentos certos, tudo simplesmente torna cada linha mágica? Então, é disso que se trata essa obra-prima que é "A Menina Que Roubava Livros".
"Tive vontade de lhe explicar que constantemente superestimo esubestimo a raça humana — que raras vezes simplesmente a estimo."- A Morte
Não existe novidade na brutalidade que foi a II Guerra Mundial, um tema já batido e rebatido em muitas histórias reais e fictícias, exploradas bilhões de vezes no cinema, nos livros, na TV. Porém, na maiorias das vezes se retrata pela visão dos judeus, que foram as maiores vítimas do holocausto. Então, de repente nesse livro maravilhoso e indispensável, nos deparamos com um ponto de vista inédito: Liesel, uma menina alemã, uma criança, filha de comunistas (também perseguidos pelo governo do Terceiro Reich), que é adotada por uma família alemã pobre que não simpatiza com a política nazista, porém vive fingindo aceitar.
Liesel é a protagonista, mas a vida da garota é narrada por um outro personagem. Aquele que faz toda a diferença. Sem o qual, diga-se de passagem, esse livro seria apenas só mais uma história comovente e triste sobre o horror da II Guerra Mundial. Porém, dessa vez, pode-se dizer que a maior presença que existe em toda e qualquer guerra, aquela que está sempre a espreita, e que provoca sempre um embaraço, um constrangimento, uma eterna vontade de ignorar sua existência, aquela com quem ninguém gosta de lembrar que tem um encontro indefinido, porém certo. À qualquer dia, qualquer hora. Apenas dessa vez, é ELA quem vai nos contar a história. E, de repente, vamos nos sentir tão íntimos, e vamos entender o quanto, talvez, nós não sejamos tão diferentes ou tão mais humanos do que a nossa ilustre narradora: a Morte.
O livro logo inicia com uma descrição linda e digna de lágrimas sobre a história da Liesel. Ela é uma sobrevivente, nas palavras da própria Morte - uma especialista em ser deixada para trás. A vida da menina é uma constante despedida, principalmente a despedida de sua inocência, porque o livro inteiro é ela adquirindo a consciência da terrível realidade que ela está vivendo. Ela começa infeliz, sem entender muito bem porque sua mãe desaparecera, o que significava a palavra judeu, ou comunista. Tudo era estranho e incompreensível, e aos poucos Liesel foi entendendo a desumanidade daquilo tudo. E observar a garota crescendo, a medida que vai aprendendo a ler, e se apegando a sua nova família é simplesmente magnânimo, porque é tudo pelos olhos da Morte, de modo que você imagina que de alguma maneira ou de outra haverá algum encontro entre ambas, e isso não é escondido em nenhum momento. Nós sabemos desde o início qual será o fim. Afinal, que outro fim poderia ter um livro narrado pela Morte?
A narradora já viu todas as piores coisas que se poderia ver no mundo, afinal, ela é a pior das consequências para a destruição. Mas é através do olhar da menina que ela passa a ver as coisas de uma outra maneira. Ela se comove. A Morte, já tão fria e dura, pode-se dizer até que entediada, se interessa por uma menina simples e humilde, vivendo em plena Alemanha nazista, na ascensão daquele que seria um dos piores ditadores que o mundo já viu. Mas a Morte viu além, ela viu a criança que descobriu a magia da leitura no meio da destruição, e viu paz, amizade e inocência onde só havia guerra. Como não se sentir curiosa por alguém que tem esse poder? De transformar algo tão feio em beleza?
Além de Liesel, o livro traz outros personagens inesquecíveis. O meu favorito, particularmente, é o Hans Hubermann, pai adotivo de Liesel. Ele é o primeiro que a menina sente como pai, e ama com todo seu coração de criança. E não é por menos, a alma de Hans é de uma bondade que beira a insanidade. Um quote que basicamente resume o grande homem que é Hans.
Ele não era muito instruído nem politizado,porém, que mais não fosse, era um homemque apreciava a justiça. Um judeu salvara suavida, uma vez, e ele não podia esquecer isso.Não podia filiar-se a um partido que antagonizavaas pessoas daquele jeito. Além disso, tal comoAlex Steiner, alguns de seus fregueses mais fiéiseram judeus. Como muitos judeus acreditavam,Hans achava que o ódio não podia durar, e adecisão de não seguir Hitler foi consciente.Em muitos níveis foi desastrosa.
Um outro personagem digno de nota é Max Vandenburg, o judeu que, graças a uma dívida de vida que Hans tinha com seu pai, acaba protegido pela família Hubermann e sendo escondido no porão da casa, estabelecendo assim uma linda amizade com Liesel. A Morte gosta de chamá-lo de O Lutador, se referindo a ele várias vezes assim durante o livro, e a medida que vamos lendo sua história, descobrimos o porquê. A relação dele com a roubadora de livros é algo que comove até o fundo da alma, e é de uma pureza e sinceridade , porque a menina surge como um anjo, o tratando como - não um príncipe ou um rei, porque não precisa de tanto - na Alemanha nazista, Max se sentiu o melhor de todos os seres humanos ao ser ao menos tratado como tal, e Liesel lhe fez muito mais que isso, além de respeito, ela lhe deu amor e confiança. Era muito mais que Max poderia sonhar.
Um dos lindos momentos entre Liesel e Max é, sem dúvida, quando ele lhe presenteia com "O Vigiador" por seu aniversário de 12 anos, um livreto de 13 páginas escrito a punho por ele próprio - apagando com tinta branca o Mein Kampf ("Minha Luta", livro escrito por Adolf Hitler, considerado a bíblia nazista) - e usando tinta preta nas paginas agora em branco, Max relata de maneira simbólica a história deles dois. É um dos momentos do livro que é impossível não derramar lágrimas.
O VIGIADOR
"Toda minha vida tive medo de homens velando sobre mim.
"Toda minha vida tive medo de homens velando sobre mim.
Suponho que o primeiro homem a velar por mim tenha sido meu pai, mas ele sumiu antes que eu pudesse recordá-lo.
(...)Muitos anos depois, precisei me esconder. Procurava não dormir, porque tinha medo de quem estaria lá quando eu acordasse.
(...) Quando estava escondido, eu sonhava com um certo homem. O mais difícil foi quando viajei para ir ao encontro dele
Por pura sorte e depois de muitas passadas, consegui.
Fiquei dormindo lá por muito tempo. Três dias, disseram-me ... E o que eu encontrei ao acordar?
Não um homem, mas outra pessoa a me vigiar.
(...) Com o passar do tempo, a menina e eu descobrimos que tínhamos coisas em comum.
Agora moro num porão. Os sonhos ruins ainda vivem no meu sono.
Uma noite, após meu pesadelo habitual, uma sombra ergueu-se sobre mim.
Ela disse: - Conte-me o que você sonha. E eu contei.
Em troca ela me explicou de que eram feitos seus próprios sonhos.
Agora acho que somos amigos, essa menina e eu. Em seu aniversário, foi ela quem deu um presente - a mim.
Isso me fez compreender que o melhor vigiador que eu conheci não é um homem ..."
Um personagem que não se pode deixar de citar, e que foi o que proporcionou a Liesel sua infância, ser moleca, brincar na rua, se sujar, fazer travessura, sorrir, gritar, correr. Viver a experiência de um primeiro amor nunca realizado, frustrado. O garoto do cabelo cor de limão, que sonhava em ser Jesse Owens (o corredor negro campeão americano, oh ironia). Que pediu tantos beijos para Liesel que não é possível contar nos dedos, e que só recebeu-os (mais até do que pediu) quando já não era mais possível correspondê-los. Rudy Steiner significou para Liesel o seu oxigênio puro, sem peso, sem tensão, sem a perspectiva de que a qualquer momento sua família poderia ser descoberta e acusada de proteger um judeu - o qual ela já amava. Com Rudy, não havia problemas. Com ele, ela era apenas a roubadora de livros, a briguenta que socava mais forte que Rudy, a menina que ganhava dele no futebol. Com ele, ela era uma criança, e não poderia imaginar vida mais feliz.
Em muitos sentidos, levar um menino como Rudy foi um roubo - tanta vida, tanta coisa por viver -, mas, de algum modo, tenho certeza de que ele teria adorado ver os escombros assustadores e a inchação do céu na noite em que se foi. Teria gritado, rodopiado e sorrido, se ao menos pudesse ver a roubadora de livros apoiada nas mãos e nos joelhos, junto ao seu corpo dizimado. Teria ficado contente vê-lá beijar seus lábios poeirentos, atingidos pela bomba. É, eu sei. Na escuridão de meu coração tenebroso, eu sei. Ele teria adorado, com certeza. Viu? Até a morte tem coração.
Esse livro é simplesmente minimalista, acho que é uma palavra boa para defini-lo. Ele é grandiosos nos minúsculos detalhes, no cotidiano, na beleza da vida rotineira de pessoas comuns. Como a felicidade pode estar presente em qualquer lugar, uma criança continua sendo uma criança. Mesmo na Alemanha, em pleno apogeu nazista.
É impressionante como o livro, mesmo girando em torno da menina e não detalhando profundamente a vida daqueles que giram em torno dela, exceto da sua família, consegue de qualquer maneira, com poucas palavras nos envolver com todos. Cada um tem uma história relacionada de alguma forma a guerra, a todo o contexto da situação que a Alemanha está passando. Alguns acontecimentos que são narrados em tão poucas palavras conseguem facilmente mexer com o leitor, emocionar mesmo, como é o caso de Michael Holtzapfel, que vê seu irmão perder as pernas e ir morrendo lentamente no campo de batalha, e mesmo sobrevivendo e voltando para casa não consegue se recuperar em paz, sem suportar a culpa, a dor e os pesadelos que o perseguiam, acabou se matando. Acontecimento narrado pela Morte de maneira simplória e dura ao mesmo tempo, que se somar ao todo não foi nem duas páginas, arrepiante:
"Muita gente me perseguiu nessa época, invocando meu nome, pedindo-me que eu os levasse comigo. (...) Era o medo de estragarem tudo e terem que se enfrentar novamente, e terem que enfrentar o mundo, e gente como você. (...) Não havia nada que eu pudesse fazer.- A Morte
A guerra levava dor para todos os lados: soldados, famílias alemãs e judias, cada qual em seu sofrimento, sem competições sobre qual sofrimento era maior, qual perda era maior, quem era a vítima e quem era o vilão, quem tava ganhando ou perdendo. Guerra é guerra, e não existe vitória na guerra.
O final do livro é, particularmente, um soco emocional, você vai caminhando para aquilo sabendo de certo modo que nada de feliz vai sair dali. Apesar de que mesmo com toda aquela destruição, a história ainda te mostra a superação, e que não importa quanto tudo seja reduzido às cinzas: você sempre pode ressurgir.
Mas o principal de tudo é a reflexão que causa, o abalo da percepção que tudo aquilo foi causado por pessoas. Cada sangue derramado foi causado por um igual. Não pela Morte por si só, esta sozinha não era a causa de nada, era mera consequência. Uma consequência de atos provocados por gente, assim como eu e você.
Algo que nem a própria Morte, depois de ler toda a história daquela garotinha que nos apareceu suja e analfabeta e no final escreveu (sem nem perceber) uma obra prima digna de comover o coração daquela que supostamente nem deveria tê-lo - nem mesmo este ser que já viu de tudo nesse mundo, é onipresente em todas as desgraças, já trabalhou para todos os vilões, é tão supostamente impiedoso, cruel e frio. - Nem ele conseguia conceber: do que os seres humanos são capazes.
Odiei as palavras e as amei, espero tê-las usado direito.- A Morte
A Menina Que Roubava Livros estreia dia 31 de Janeiro no Brasil, e nós mal podemos esperar! ;*
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