Como estudante de Letras, tive contato com a obra A Metamorfose, clássico literário de Franz Kafka. Nele, um homem acorda, numa manhã comum, transformado em inseto, sem saber ao certo o que aconteceu, de que forma e muito menos o porquê dessa estranha transformação. O autor se utiliza dessa “metamorfose” para debater diversos assuntos pertinentes a cada um de nós, seres humanos, como relação familiar, papel na sociedade e relações interpessoais. Para os mais céticos e práticos, vou logo dizendo que Kafka não nos dá uma explicação para o ocorrido. O homem simplesmente se transformou em barata e pronto. Supere e não espere por respostas. Mas, também, que tipo de resposta você gostaria de obter para esse mistério?
O Pacto funciona de forma semelhante. Ig Perrish acorda, numa manhã, de ressaca e com dois chifres nascendo em suas têmporas. Sem saber o porquê e muito menos o que aquilo significa, ele começa a perceber que os tais chifres vão crescendo aos poucos e lhe dando poderes, como leitura de mentes e extração de segredos das pessoas – sem que elas queiram. Munido de seus poderes, Ig parte numa jornada para descobrir a verdade sobre o brutal assassinato de sua namorada. Ele acaba descobrindo a verdade não só sobre o caso, mas também sobre as pessoas que o cercam e muitas sobre si mesmo.
Primeiramente, é preciso louvar a maior qualidade de O Pacto: a escrita de seu autor, Joe Hill. O filho de Stephen King sabe descrever sensações perfeitamente, e faz comparações extremamente precisas para que o leitor não só entenda exatamente o que ele imaginou, mas pense como ele.
Entretanto, nem a excelente escrita de Hill eclipsa os problemas de O Pacto. A excessiva quantidade de flashbacks e histórias paralelas nos cansam – ainda que, quando você chegue ao fim do livro, entenda que elas são necessárias. O autor cria, entre os poucos personagens existentes, a dúvida e o suspense sobre quem é o culpado, e vamos descobrindo, bem aos poucos, o passado de cada um, para que as respostas de nossas perguntas cheguem. É interessante a ideia de Joe Hill querer mostrar que o passado e o presente estão, sem dúvida alguma, conectados (lembrei do filme Efeito Borboleta diversas vezes), mas o artifício entra em diversos momentos cruciais da história, dando um efeito, muitas vezes, anticlímax.
Outro fator que considero importante destacar é que, ao meu ver, faltou um pouco de ambição a O Pacto, o que poderia tê-lo deixado muito mais interessante. Estamos falando de um homem que não está virando um demônio, e sim o próprio, com D maiúsculo. Isso abre tantas possibilidades... Mas Hill escolheu fazer uma história sobre um homem que “decide” se tornar o Demônio para descobrir “apenas” o que aconteceu com sua amada, e nessa jornada, acabar dando diversos recados sobre religião (existem diversas situações de blasfêmia, que deixam clara a possível inclinação do autor pelo ateísmo), reflexões sobre a maldade intrínseca nas pessoas e até um debate sobre o que o Demônio representa verdadeiramente para a sociedade. Eu entendo a escolha de Joe, porém, a sensação de que seu livro poderia ter alcançado patamares muito mais interessantes me foi recorrente durante toda a leitura.
Mais de uma vez, nos deparamos com a tese de que o Demônio não é um vilão, e sim um anti-herói. A ideia é criar um contraste entre Ig Perrish, um homem de bom coração, honesto e humano, e sua transformação em algo maligno até os ossos (supostamente). Porém, o autor utiliza esse contraste apenas para dar seu recado de que as pessoas comuns podem ser tão perversas quanto o próprio mal original. Você não sente que Ig está virando o Demônio em carne e osso, e sim algo apenas próximo a isso, que envolve mais estética do que essência. Isso faz com que, infelizmente, esse contraste não funcione tão bem como deveria, e não vai muito além de uma ou outra reflexão interessante.
Depois do ponto final, minhas conclusões sobre O Pacto foram: a) Joe Hill é, sim, um ótimo escritor; b) mal posso esperar por sua obra-prima, que sem dúvida, não é essa.